Linhos de Agarez – As viagens da lançadeira

Navegando ao longo do tear, a gasta lançadeira de Olímpia Monteiro vai ditando as regras da arte. Dela vai saindo o fio de linho, o fino cabelo branco nascido em terras de Agarez.

Fio de linho, terras de agarez Desprendidas as dificuldades de chegar lá em cima, o encontro enriquecedor com a matéria-prima. São já poucas as mulheres que mantêm em funcionamento os seus teares, mas as que o fazem têm neste ofício um orgulho enternecedor. “Tenho presunção nisto mais que em ouro”, garante Olímpia Monteiro, enquanto mostra algumas das peças que guarda na caixa do bragal. Aos 74 anos, esta artesã conta que foi com tenra idade que começou a ajudar a mãe nestas lides. “Tinha seis aninhos quando comecei a trabalhar. Já a minha mãe e avó trabalhavam os linhos. Depois continuei e sempre cultivei o linho.” Esse envolvimento precoce explica a forma apaixonada como olha para as peças que lhe saem das mãos morenas. “Fui criada nisto e este é o meu tesouro”, diz. Uma arte antiga, que tem passado de geração em geração, sobrevive graças à insistência de quem ainda hoje a preserva afincadamente. Olímpia Monteiro explica que o saber não se esgota nas horas em que se torna devota do tear. Antes de ter o linho pronto a ser confeccionado é necessário proceder à sua plantação. Uma boa sementeira, bem regada e um olhar atento ao crescimento da planta são procedimentos fundamentais se se pretende uma fibra de qualidade superior. Olímpia não semeou linho este ano nem no anterior. O excesso que sobrou de colheitas anteriores garante a matéria-prima necessária para mais este ano de trabalho. Os linhos são semeados “ao vinte e tal de Abril” e arrancam-se depois, “quando for na maré do São Pedro”. Durante este período, as sementes são lançadas à terra, bem adubada e privada de ervas nocivas que haja em seu redor. Cravejada de sementes, essa terra é depois alimentada e bem regada. Quando o linho atinge a maturação ideal é então colhido aos molhos. Depois de arrincada (arrinca ou arriga), a planta é ripada com uma espécie de escova de pregos, baptizada com o nome de ripo. O objectivo passa por retirar da linhaça as suas sementes, filtrando as chamadas “corolinhas”. Posteriormente, os fios de linhaça conhecem as águas do poço onde vão perder a “verdura”. “Mete-se o linho no poço e, ao fim dos 13 dias que lá tem que estar, estende-se na leira onde fica mais nove dias, em contacto com o orvalho”, esclarece Olímpia.

A feitura diligente

Na casa onde se encontra o tear da artesã, bem no centro da aldeia transmontana, estão alguns fardos de linho, já tratados em anos anteriores, à espera de serem transformados. É na soleira da porta que Olímpia, munida de uma maça, começa todo o processo. Em batimentos ritmados vai prensando os fios de linhaça, até que estejam prontos a ser estrigados. Seguidamente e com um ar aguerrido, Olímpia empunha a espadela, munição pacífica que a ajuda a tratar a linhaça, separando, a cada golpe, o linho da estopa. Os fios dourados da linhaça passam a um branco celeste através de uma série de fases distintas e demoradas. Para o linho adquirir uma tonalidade esbranquiçada tem que ser colocado no sarilho, antes de ser fervido numa mistura de água, cinza e sabão. “A gente colocava as meadas em cinza e, depois, cegava um mão cheia de erva e levava-se ao forno”, recorda a artesã. Esta junção de elementos ficava um dia no forno, “é uma cozedura quase como a da broa”. Retiradas no dia seguinte, as meadas eram lavadas e estendidas a corar. Finda essa etapa, as meadas de linhaça são colocadas na dubadoira, de onde só saem feitas novelo. Nesta fase, os fios já perderam a cor dourada e alguma rudeza, apresentando uma tonalidade alva e um fio cada vez mais fino, que será colocado nas canelas para chegar ao tear. “Isto tem muito que se lhe diga desde o princípio e todas as peças são precisas. Sem isto não se pode fazer o linho”, sublinha Olímpia Monteiro. Os utensílios com os quais trabalha foram construídos pelo avô, passaram para a mãe e fazem hoje parte do relicário que a acompanha diariamente. Ao lado do tear, onde Olímpia agora trabalha encontra-se um outro, visivelmente desgastado, testemunha viva do pedalar acelerado da artesã. “Este tear tem mais de 200 anos, mas já não trabalho nele”, diz nostálgica. É junto ao ripo que Olímpia explica o que distingue o linho da estopa. À medida que os fios de linhaça passam pelos agressivos pregos do ripo deixam para trás as sobras da planta. Este excedentário, que não vai a corar, será posteriormente utilizado para fazer as peças de estopa, naturalmente mais baratas em virtude do seu processo não ser tão moroso. Depois de separados, os fios, que serão linho ou estopa, são colocados no tear pela artesã. Num gesto exímio e seguro, Olímpia vai passando a lançadeira por debaixo dos fios. Nesse mesmo momento, os fios vão-se unindo aos que, já entrelaçados, deixam adivinhar o futuro pano. É com alguma mágoa que Olímpia desabafa que as mais raparigas novas de Agarez não se interessam pela arte, em parte porque a dedicação a este ofício obriga a uma espécie de cativeiro consentido. “Algumas raparigas já andaram a aprender no curso, mas não vão lá porque o tear é uma prisão. O tear não está no povo. Se estivesse no povo, elas teciam e davam à língua”. Apenas a roca permite interromper o trabalho solitário do tear. “Cada uma sai com a sua roca e fia para si, assim podemo-nos juntar três ou quatro e conversar.”

O ouro que se tece em branco

Todo o trabalho inerente à transformação de um emaranhado de fios em delicadas peças exige um valor pecuniário elevado. “Isto demora muito tempo a fazer. Estando os linhos preparados demora-me quase uma semana a fazer estes panos de mesinha de cabeceira”, refere Olímpia. Por isso, as pessoas procuram as peças mais acessíveis. “Estes panos de estopa são os que vendo melhor. Na Feira de S. Pedro e agora na NERVIR, quando os vou lá vender, muitos me compram.” Um conjunto de três panos em linho para mesa-de-cabeceira custa 60 euros, sendo de estopa 45. Mas Olímpia assegura que o preço do linho não sofre aumentos desde há quatro ou cinco anos, “as pessoas agora é que compram menos”. Ainda assim há quem lhe encomende trabalhos. “São pessoas de fora que vêm cá à Feira de S. Pedro, conhecem-me e depois telefonam a pedir mais peças.” Um pano para mesa de sala custa 75 euros e uma toalha de mesa pode chegar aos 275 euros. Mas, afinal, o preço acaba por se justificar pela qualidade do produto final. “Eu ainda durmo nestes lençóis e regala-me dormir neste linho fresco”, confidencia a artesã.

Um baú de horas gastas

Na residência de Olímpia resta ainda um baú envelhecido repleto de peças feitas em linho. Este relicário, a caixa do bragal, guarda muitas das horas de dedicação oferecidas à arte que desenvolve com tanto apreço. No cofre habitam várias dezenas de peças, entre panos, colchas e toalhas, que esperam ser transportadas para outros locais, onde certamente serão, da mesma forma, admirados. Nesta teia de incertezas quanto à tradição dos linhos de Agarez, Olímpia Monteiro refere que as suas filhas “sabem a arte”, mas o que se passa é que “estão todas empregadas e para isto é preciso tempo”. Fiam-se novas esperanças, pedala-se para cumprir a tradição e tece-se o orgulho de preservar uma arte, cuja resistência está por um fio.

Referência

Reportagem de Daniel Faiões/Mensageiro Notícias

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